segunda-feira, 30 de junho de 2014

CONARH 1990 - Vida e Morte Severina

Compartilho com vocês, uma adaptação do auto “Vida e Morte Severina”, de João Cabral de Mello Neto, proferida no XIV CONARH, realizado na cidade do Recife, há mais de 20 anos.

A adaptação para o "povo de RH", foi feita pelo consultor e professor pernambucano, Fernando Antonio Gonçalves, e encerrou sua apresentação.

Ao ler, associe o texto para a época política e social brasileira de 1990.

Muitos Severinos, iguais em tudo na vida,
cabeça grande, ventre crescido, pernas finas,
sangue que tem pouca tinta, a morrer de morte igual, morte severina,de velhice antes dos trinta,
de emboscada antes dos vinte, de fome um pouco por dia,Severino retirante, expulso pelos donos de terra e gente.

Severino de Maria, que queria espalhar-se mais, ter uns hectares de terra nas várzeas, não chão batido, de areia lavada.

Severino de Maria, morador das periferias do Oiapoque ao Chuí, que queria voar mais livre,
e entender que liberdade não é apenas uma calça comum e desbotada.

Severino de Maria, estamos vivendo uma econômica ilusão, desmemoriados que somos, pouco importando o alerta de André Malraux: “a dignidade é o contrário da humilhação!”

Severino de Maria, nós lhe pedimos perdão, importar não é o que importa, o que importa mesmo é teto, escola e feijão.

Severino de Maria, a levar coisas de não, fome, sede e privação. Só morte tendo encontrado, quem pensava encontrar vida, e o pouco que não foi morte foi de vida severina.

Severino de Maria, pai dos meninos de rua, dos trombadinhas da Praça da Sé, de Ceilândia, Taguatinga,
da Praça Tiradentes, Candelária, Pina e outras tantas, ouvidos da caatinga, meninos que roubam pra sobreviver, abençoados por Deus.

Severino de Maria, seus filhos moldura esquálida, criança pálida, criança franzina, menino guenzo,
tão belo como um sim numa sala negativa.

Severino de Maria, pai dos nossos funcionários, que nada entendem de mais-valia mas que percebem todo dia a agonia dos seus salários.

Severino de Maria, meu irmão de caminhada, como é dificil defender só com palavras a vida,
ainda mais quando ela é esta que se vê, vida severina.

Severino de Maria, nós, RH, ainda não sabemos ouvir as meninas, evitar a mediocridade,
incrementar a emoção, o contato, a criatividade, ouvir o que não foi dito, perceber o corporal,
registrar a dor e o mal, enaltecer o que é nobre, imaginar o que é ser pobre.

Severino de Maria, nós ainda não sabemos elaborar um querer coletivo porque a casa está troncha,
todo mundo está faminto, não se nascendo outra vez, e ao invés de galo, vive-se pinto.

Mas nós desejamos Severino de Maria, nos livrar contigo dessa cova de bom tamanho que á nossa parte nesse latifúndio. E também nos libertar, Severino meu irmão, de uma cultura que não é nossa, consequência maior de uma fossa, que é deserta de idéias e que nos foi imposta prá quem gosta e quem não gosta. Precisamos pensar mais, Severino de Maria, para denunciar e anunciar, conhecer para criticar, combater o bom combate, com bagagem cultural enxotando todo mal.

Ajude-nos Severino retirante, para que possamos ajudá-lo a manter nossa altivez. Com sua voz, acharemos nossa vez, nossos braços, seu regaço, seu espaço, nossa sobrevivência. Você é Severino de Maria, porque somos uma nação endividada, submissa, encarcerada, ração maior de agiotas que, lá fora querem mais, nos fazendo crer na inexistência de outras alternativas para também podermos SER.

Meu companheiro de sina, muitos nos imaginam uma nação severina, caudal de alienados, sem presente nem passados, sem teóricos nem cientistas, surdos e mudos, sem vistas, sem virilidade e ardor por uma causa de amor, que é amar a todo um povo expulsor de estrangeiro, povo muito brasileiro.
Somos menos que você, Severino de Maria, pois de você precisamos e do seu suor escorrido.
Mas sua liberdade será, a bem da verdade, nossa maioridade Severino de Maria, neste encontro faltou você. Você não veio, ausentou-se.

Mas nós, RH, aprendemos que o nosso bom viver vai precisar de você e do seu modo de agir,
desse seu modo de rir,amarelo como os seus, dessa maneira sublime de pensar também em Deus.
E de olhar desconfiado, pés descalços, calejados, esperança sem igual de ver bem perto um final.
Severino de Maria, obrigado aqui e agora, pois em você, a toda hora, desesperança não há.

Obrigado por nos fazer compreender pra transformar, ensinando a todo instante à mente que se prepara, pra ficar sempre ao seu lado, lado a lado, companheiro, dizendo pro mundo inteiro, fico contigo, não saio, sob chicote e a vara: “só deixo meu cariri no último pau de arara”!




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